Especial com Alcivando Lima – EVAPORA NÃO, SUCULENTO BIFE
‘“Não é a pornografia que é obscena, é a fome que é obscena”. José Saramago – (Premio Nobel de Literatura 1998).
Sonhou que era um Paxá atendido por mil lacaios. Um deles, vestindo uma libré emperiquitada de alamares, servia-lhe um suculento bife temperado no alho, cebola e do aromático açafrão de Mara Rosa. As batatas fritas chegavam em rodelas obedecentes ao formato de quando colhidas e não do jeito que os norte-americanos as comem na feição de ripas ou caibros, uns trecos com gosto de isopor que se tafuia numa adocicada e deliciosa gororoba vermelha, coisa que tortura diabéticos e emagrecentes no mundo inteiro.
Antes que me mandem pentear macaco, devo explicar à gentil leitora e ao circunspecto leitor, o que quero dizer com Paxá, pois deles o que temos são gravuras que os mostram pançudos, de rosto vermelhinho enfiados em seus turbantes, sapatos de bicos em caracol semelhante a probóscide de borboleta, (aparelho bucal que muitos insetos utilizam para sugar o néctar das flores e o sal dos barrancos). Nota-se nas gravuras a estampa de quem foi criado na banha, come pra caramba e vive rodeado de lindas odaliscas e muitos, muitos puxa sacos
Consideremos a coisa ao pé da letra para constatarmos que só o título foi abolido, passando de Paxá para CEO e demais títulos que lhes dão direito à moradia, comida e serviçais, voos pra tudo quanto é banda, reembolso disso e daquilo, aposentadoria especial, férias de quatro meses, salários astronômicos, duzentos auxiliares onde só cabem quatro e, para grande parte, mutretas, muitas mutretas.
De súbito o sonho dissipou-se com um estrondo doido ecoando no fim do mundo pra logo repetir-se em sequências de algo indo ou vindo aos trambolhos.
Puf. O suculento bife com fritas evaporou-se na cadência do estalo. — “Bora destrinchar o porquê desse estampido louco que me surrupiou tão delicioso bife”.
Ao lado da rotatória estava prostrada uma carreta de rodas pro ar e o baú retorcido. Um poviléu encardido apareceu pra saquear a carga esparramada no asfalto. Muitos carregando facões e foices que refletiam nos seus gumes o embaçado luar.
O cheiro da carga ou a falta dele afetou sobremaneira a turba que, em grunhidos catava um e outro daqueles retângulos, apalpava-o com sofreguidão ao tempo que o cheirava umas tantas vezes para constatar que aquela porcaria não era comida. Alguns meteram o facão na cacunda da peça que, mesmo partida ao meio, não apresentava textura, odor e jeito de comida. Que merda… não é comida, nem smartphone, nem maconha, nem crack e nem tênis importado, é somente livros p*rra!, muitos livros que num serve pra nada. Quem vai comer livro? Quem vai fumar uma p*rra dessas… hein?
Um quesito perturbador. Ab-so-lu-ta-men-te nenhum livro foi saqueado. Noticia-se que socialites autoras e autores não tiravam (antes do desastre) os olhos do iphone e do desktop. Vai que chega um e-mail dizendo que o distinto escritor ou a célebre escritora fora agraciado(a) com o Prêmio Camões e, por ex-clu-si-vo desleixo, perde-o por não confirmar presença ou justificar ausência?… Eu, hein! O outro quesito é a Academia Brasileira de Letras querer manifestar júbilo, (não sei como, mas pode) e não ter ninguém de plantão para agradecer o reverente afeto. Essa impiedosa expectativa trouxe perturbação psicomotora e muitos enfiaram o pé na pinga além de um gaguejamento esquisito abraçar outros tão logo souberam que sua monumental obra, em vez de ir direto para uma famosa livraria, foi parar numa recicladora e transformada em embalagem de escovas de esfregar chão.
Mordendo os beiços de raiva, o sonhador volta ao barraco com o firme propósito de retomar seu devaneio de Paxá. Após séculos de sofrimento (sonho não firma noção de tempo) deu de cara com o suculento bife, mas de novo o feladap*ta puf, evapora-se em tênues fumaças azuladas e no seu lugar veio um montão de livros acompanhados do chirriar e uuhs dumas corujas empoleiradas na jaqueira.